(A cena se passa em minha cela de prisão. Geralmente, fico na solitária, imerso no seguinte problema: Pode um objeto ser considerado uma obra de arte se também pode ser usado para limpar o fogão? Mas, no sonho, sou visitado por Ágaton e Símias.)
Ágaton – Ah, meu velho e sábio amigo! Como vão os seus dias de confinamento?
Woody – O que se pode dizer do confinamento, Ágaton? Meu corpo pode estar circunscrito a certos limites, mas minha mente vagueia livremente, sem ser detida pelas quatro paredes. Eu pergunto, então: o que é o confinamento?
Ágaton – Tudo bem, mas e se você quiser dar uma voltinha?
Woody – Boa pergunta. Não posso.
(Nós três nos sentamos em uma pose clássica, não muito diferente de um friso grego. Finalmente, Ágaton fala.)
Ágaton – Temo que o mundo seja mau. Você foi condenado à morte.
Woody – Tudo bem, chato foi ter provocado tanta polêmica no Senado.
Ágaton – Polêmica nenhuma, a decisão foi unânime.
Woody – Sério?
Ágaton – Primeira votação.
Woody – Hummm... Eu contava com um pouco mais de apoio…
Símias – O Senado está puto com você por causa daquelas idéias a respeito de um Estado utópico.
Woody – Talvez eu nunca devesse ter sugerido que a gente precisava de um rei-filósofo.
Símias – Principalmente apontando para você mesmo e pigarreando o tempo todo.
Woody - Engraçado, não consigo guardar ódio dos meus executores.
Ágaton – Nem eu.
Woody (Pigarro) – Bem... Ah-ham... Pensando bem, o que é o mal senão o excesso de bem?
Ágaton – Como é?
Woody – Olhe por esse ângulo. Se um homem canta uma bela música, trata-se de uma obra de arte. Mas, se continua cantando, começa a dar dor de cabeça.
Ágaton – Verdade...
Woody – E se ele definitivamente não para de cantar, você vai querer lhe arrebentar a cara.
Ágaton – Sim. Muito verdadeiro.
Woody – Quando serei executado?
Ágaton – Que horas são agora?
Woody – Hoje???
Ágaton – Parece que sim. Querem que você desocupe a cela o mais depressa possível.
Woody – Está bem! Deixem que me tirem a vida! Saibam que prefiro morrer do que abandonar meus princípios de justiça e de direito para todos. Não chore, Ágaton.
Ágaton – Não estou chorando. É uma alergia.
Woody – Para o homem de intelecto, a morte não é um fim, mas um começo.
Símias – Como disse?
Woody – Deixe-me pensar um pouco.
Símias – À vontade..
Woody – É verdade, não é, Símias, que o homem não existe antes de nascer?
Símias – Absolutamente verdadeiro.
Woody – Assim como deixa de existir depois que morre, não?
Símias – Isso mesmo.
Woody – Humm...
Símias – E daí?
Woody – Daí que estou um pouco confuso. Você sabe que só me servem carneiro nessa cadeia e muito mal cozido.
Símias – Os homens identificam a morte com o fim. Por isso, a temem.
Woody – A morte é um estado de não-ser. O que não é, não existe. Só a verdade existe. Mas, o que é a verdade senão a confirmação de si mesma? Mas, se a morte pode ser confirmada por si mesma, a morte é a verdade, logo existe! Estou frito! Ei, o que eles estão planejando fazer comigo?
Ágaton – Fazê-lo tomar cicuta. Lembra daquele líquido escuro que atravessou a sua mesa de mármore?
Woody – Aquilo?
Ágaton – Basta uma colher. Mas eles terão um frasco inteiro à mão, caso você derrame um pouco.
Woody – Será que vai doer?
Ágaton – Vão lhe pedir que não faça uma cena. Para não perturbar os outros prisioneiros.
Woody – Claro, claro.
Ágaton – Eu disse a eles que você morreria bravamente, para não renunciar aos seus princípios.
Woody – Hummm... Escute, ninguém mencionou a palavra “exílio”?
Ágaton – Desde o ano passado decidiram não exilar mais ninguém. Muita burocracia.
Woody – Certo… (perturbado e disperso, mas tentando manter o autocontrole). Humm, o que há de novo?
Ágaton – Estava até agora com Isósceles. Ele tem uma grande idéia para um novo triângulo.
Woody – Certo, certo… (Subitamente abandonando toda aparência de coragem). Olhe, vou ser franco com você: não quero ser executado! Sou muito jovem para morrer!
Ágaton – Mas essa é sua chance de morrer pela verdade!
Woody – Você não entendeu, Ágaton. Sou um apólogo da verdade. Mas é que fui convidado para um almoço em Esparta, semana que vem, e detestaria faltar. É minha vez de levar a bebida. Você sabe como são esses espartanos. Vivem a fim de brigar.
Ágaton – Será nosso mais sábio filósofo um covarde?
Woody – De jeito nenhum. Mas também não sou herói. Marquem a coluna do meio, sei lá!
Símias – Você é um verme.
Woody – Por aí.
Ágaton – Mas não foi você que provou que a morte não existe?
Woody – Olhem, andei provando muitas coisas na vida. Como acham que consigo pagar o aluguel? Umas teorias aqui, outras observações ali, uma frase brilhante de vez em quando, e, às vezes, alguns ditados e máximas. Paga melhor do que colher azeitonas. Mas não vamos exagerar!
Ágaton – Mas você provou tantas vezes que a alma é imortal!
Woody – E é! Pelo menos no papel. Esse é o problema da filosofia: já não funciona tão bem depois da aula.
Símias – E as “formas” eternas? Você disse que tudo sempre existiu e sempre existirá!
Woody – Estava me referindo a objetos pesados como estátuas ou coisas do tipo. Com gente é diferente!
Ágaton – E toda aquela conversa sobre morrer ser o mesmo que dormir?
Woody – Eu sei, mas o problema é que, se você está morto e alguém grita “Hora de acordar!”, é muito difícil encontrar os chinelos.
(Entra o carrasco com uma taça de cicuta. Seu rosto lembra um pouco o de Boris Karloff)
Carrasco – Uh-hu! Adivinhem quem chegou? Quem vai tomar a cicuta?
Ágaton (Apontando para mim) – Ele.
Woody – Puxa, é uma dose dupla! Olha, ando com o fígado meio bombardeado...
Carrasco – Beba tudo. O veneno costuma ficar no finzinho.
(Aqui dizem que meu comportamento costuma ser diferente do de Sócrates e dizem que grito durante o sonho): Não! Por favor! Não quero! Socorro! Mamãe!
(O carrasco me passa uma taça fervilhante, apesar de minhas súplicas humilhantes, e tudo parece chegar ao fim. Então, talvez devido a um inato instinto de sobrevivência, o sonho muda completamente e entra um mensageiro.)
Mensageiro – Parem! Houve uma apelação e o Senado votou de novo. As acusações foram levantadas. Você foi declarado inocente e será publicamente reabilitado!
Woody – Finalmente! Eles recuperaram o bom senso! Sou um homem livre! Livre! E ainda serei reabilitado! Rápido, Ágaton e Símias, peguem minhas malas. Preciso ir. Praxíteles deve estar ansioso para esculpir minha estátua. Mas antes, descreverei para vocês uma pequena parábola.
Símias – Pô, isso é que é um final inesperado. Será que o Senado sabe o que está fazendo?
Woody – A parábola é a seguinte. Um grupo de homens vive numa caverna escura. Nunca viram o sol. A única luz que conhecem é a das velas que usam para iluminar a caverna.
Ágaton – E onde arranjam as velas?
Woody – Bem, já estavam lá e não me amolem.
Ágaton – Vivem numa caverna e têm até velas? Muito estranho...
Woody – Quer ouvir a parábola ou não?
Ágaton – OK, OK, mas anda logo. Está demorando muito.
Woody – Então, certo dia, um dos habitantes da caverna dá um pulinho lá fora e vê o mundo.
Símias – Em toda sua clareza.
Woody – Perfeitamente. Em toda sua clareza.
Ágaton – E quando volta para contar aos outros, ninguém acredita.
Woody – Não exatamente. Ele não conta aos outros.
Ágaton – Não???
Woody – Não. Em vez disso, abre um açougue, casa-se com uma dançarina e morre de trombose aos 42 anos.
(Eles me agarram e forçam a cicuta pela minha goela abaixo. Nesse momento, costumo acordar, sobressaltado e só um copo de iogurte consegue me acalmar).
Woody Allen. Na Pele de Sócrates, in Que Loucura?. [Título original: Side Effects.] Tradução de Ruy Castro. Porto Alegre: L&PM Editores, 2011, p. 83-90.
(Tradução adaptada)