23 junho 2013

Woody Allen - Na Pele de Sócrates

De todos os homens famosos deste mundo, o que eu mais gostaria de ter sido era Sócrates. Não apenas porque ele foi um grande pensador, porque afinal eu também sou capaz de observações profundas, embora as minhas invariavelmente girem em torno de uma aeromoça sueca e algumas algemas. O que me fascina no mais sábio de todos os gregos é a sua incrível coragem diante da morte. Preferia dar sua vida para mostrar que tinha razão do que abandonar seus princípios, já viram coisa igual? Devo confessar que não sou assim tão corajoso a respeito de morrer ou de manter a força de vontade, considerando-se que, quando ouço um barulho inesperado, como o escapamento de um carro, pulo direto nos braço da pessoa com quem estiver conversando. Mas reconheço que a brava morte de Sócrates deu um sentido de autenticidade à sua vida, exatamente o que anda faltando à minha vida, exceto para o Imposto de Renda. Confesso que, muitas vezes, já tentei calçar as sandálias do grande filósofo, mas não importa o que faça, acabo cochilando e tendo o seguinte sonho:

(A cena se passa em minha cela de prisão. Geralmente, fico na solitária, imerso no seguinte problema: Pode um objeto ser considerado uma obra de arte se também pode ser usado para limpar o fogão? Mas, no sonho, sou visitado por Ágaton e Símias.)

Ágaton – Ah, meu velho e sábio amigo! Como vão os seus dias de confinamento?

Woody – O que se pode dizer do confinamento, Ágaton? Meu corpo pode estar circunscrito a certos limites, mas minha mente vagueia livremente, sem ser detida pelas quatro paredes. Eu pergunto, então: o que é o confinamento?

Ágaton – Tudo bem, mas e se você quiser dar uma voltinha?

Woody – Boa pergunta. Não posso.

(Nós três nos sentamos em uma pose clássica, não muito diferente de um friso grego. Finalmente, Ágaton fala.)

Ágaton – Temo que o mundo seja mau. Você foi condenado à morte.

Woody – Tudo bem, chato foi ter provocado tanta polêmica no Senado.

Ágaton – Polêmica nenhuma, a decisão foi unânime.

Woody – Sério?

Ágaton – Primeira votação.

Woody – Hummm... Eu contava com um pouco mais de apoio…

Símias – O Senado está puto com você por causa daquelas idéias a respeito de um Estado utópico.

Woody – Talvez eu nunca devesse ter sugerido que a gente precisava de um rei-filósofo.

Símias – Principalmente apontando para você mesmo e pigarreando o tempo todo.

Woody - Engraçado, não consigo guardar ódio dos meus executores.

Ágaton – Nem eu.
Woody (Pigarro) – Bem... Ah-ham... Pensando bem, o que é o mal senão o excesso de bem?

Ágaton – Como é?

Woody – Olhe por esse ângulo. Se um homem canta uma bela música, trata-se de uma obra de arte. Mas, se continua cantando, começa a dar dor de cabeça.

Ágaton – Verdade...

Woody – E se ele definitivamente não para de cantar, você vai querer lhe arrebentar a cara.

Ágaton – Sim. Muito verdadeiro.

Woody – Quando serei executado?

Ágaton – Que horas são agora?

Woody – Hoje???

Ágaton – Parece que sim. Querem que você desocupe a cela o mais depressa possível.

Woody – Está bem! Deixem que me tirem a vida! Saibam que prefiro morrer do que abandonar meus princípios de justiça e de direito para todos. Não chore, Ágaton.

Ágaton – Não estou chorando. É uma alergia.

Woody – Para o homem de intelecto, a morte não é um fim, mas um começo.

Símias – Como disse?

Woody – Deixe-me pensar um pouco.

Símias – À vontade..

Woody – É verdade, não é, Símias, que o homem não existe antes de nascer?

Símias – Absolutamente verdadeiro.

Woody – Assim como deixa de existir depois que morre, não?

Símias – Isso mesmo.

Woody – Humm...

Símias – E daí?

Woody – Daí que estou um pouco confuso. Você sabe que só me servem carneiro nessa cadeia e muito mal cozido.

Símias – Os homens identificam a morte com o fim. Por isso, a temem.

Woody – A morte é um estado de não-ser. O que não é, não existe. Só a verdade existe. Mas, o que é a verdade senão a confirmação de si mesma? Mas, se a morte pode ser confirmada por si mesma, a morte é a verdade, logo existe! Estou frito! Ei, o que eles estão planejando fazer comigo?

Ágaton – Fazê-lo tomar cicuta. Lembra daquele líquido escuro que atravessou a sua mesa de mármore?

Woody – Aquilo?

Ágaton – Basta uma colher. Mas eles terão um frasco inteiro à mão, caso você derrame um pouco.

Woody – Será que vai doer?

Ágaton – Vão lhe pedir que não faça uma cena. Para não perturbar os outros prisioneiros.

Woody – Claro, claro.

Ágaton – Eu disse a eles que você morreria bravamente, para não renunciar aos seus princípios.

Woody – Hummm... Escute, ninguém mencionou a palavra “exílio”?

Ágaton – Desde o ano passado decidiram não exilar mais ninguém. Muita burocracia.

Woody – Certo… (perturbado e disperso, mas tentando manter o autocontrole). Humm, o que há de novo?

Ágaton – Estava até agora com Isósceles. Ele tem uma grande idéia para um novo triângulo.

Woody – Certo, certo… (Subitamente abandonando toda aparência de coragem). Olhe, vou ser franco com você: não quero ser executado! Sou muito jovem para morrer!
Ágaton – Mas essa é sua chance de morrer pela verdade!

Woody – Você não entendeu, Ágaton. Sou um apólogo da verdade. Mas é que fui convidado para um almoço em Esparta, semana que vem, e detestaria faltar. É minha vez de levar a bebida. Você sabe como são esses espartanos. Vivem a fim de brigar.

Ágaton – Será nosso mais sábio filósofo um covarde?

Woody – De jeito nenhum. Mas também não sou herói. Marquem a coluna do meio, sei lá!

Símias – Você é um verme.

Woody – Por aí.

Ágaton – Mas não foi você que provou que a morte não existe?

Woody – Olhem, andei provando muitas coisas na vida. Como acham que consigo pagar o aluguel? Umas teorias aqui, outras observações ali, uma frase brilhante de vez em quando, e, às vezes, alguns ditados e máximas. Paga melhor do que colher azeitonas. Mas não vamos exagerar!

Ágaton – Mas você provou tantas vezes que a alma é imortal!

Woody – E é! Pelo menos no papel. Esse é o problema da filosofia: já não funciona tão bem depois da aula.

Símias – E as “formas” eternas? Você disse que tudo sempre existiu e sempre existirá!

Woody – Estava me referindo a objetos pesados como estátuas ou coisas do tipo. Com gente é diferente!

Ágaton – E toda aquela conversa sobre morrer ser o mesmo que dormir?

Woody – Eu sei, mas o problema é que, se você está morto e alguém grita “Hora de acordar!”, é muito difícil encontrar os chinelos.

(Entra o carrasco com uma taça de cicuta. Seu rosto lembra um pouco o de Boris Karloff)

Carrasco – Uh-hu! Adivinhem quem chegou? Quem vai tomar a cicuta?

Ágaton (Apontando para mim) – Ele.

Woody – Puxa, é uma dose dupla! Olha, ando com o fígado meio bombardeado...

Carrasco – Beba tudo. O veneno costuma ficar no finzinho.

(Aqui dizem que meu comportamento costuma ser diferente do de Sócrates e dizem que grito durante o sonho): Não! Por favor! Não quero! Socorro! Mamãe!

(O carrasco me passa uma taça fervilhante, apesar de minhas súplicas humilhantes, e tudo parece chegar ao fim. Então, talvez devido a um inato instinto de sobrevivência, o sonho muda completamente e entra um mensageiro.)

Mensageiro – Parem! Houve uma apelação e o Senado votou de novo. As acusações foram levantadas. Você foi declarado inocente e será publicamente reabilitado!

Woody – Finalmente! Eles recuperaram o bom senso! Sou um homem livre! Livre! E ainda serei reabilitado! Rápido, Ágaton e Símias, peguem minhas malas. Preciso ir. Praxíteles deve estar ansioso para esculpir minha estátua. Mas antes, descreverei para vocês uma pequena parábola.

Símias – Pô, isso é que é um final inesperado. Será que o Senado sabe o que está fazendo?

Woody – A parábola é a seguinte. Um grupo de homens vive numa caverna escura. Nunca viram o sol. A única luz que conhecem é a das velas que usam para iluminar a caverna.

Ágaton – E onde arranjam as velas?

Woody – Bem, já estavam lá e não me amolem.

Ágaton – Vivem numa caverna e têm até velas? Muito estranho...

Woody – Quer ouvir a parábola ou não?

Ágaton – OK, OK, mas anda logo. Está demorando muito.

Woody – Então, certo dia, um dos habitantes da caverna dá um pulinho lá fora e vê o mundo.

Símias – Em toda sua clareza.

Woody – Perfeitamente. Em toda sua clareza.

Ágaton – E quando volta para contar aos outros, ninguém acredita.

Woody – Não exatamente. Ele não conta aos outros.

Ágaton – Não???

Woody – Não. Em vez disso, abre um açougue, casa-se com uma dançarina e morre de trombose aos 42 anos.

(Eles me agarram e forçam a cicuta pela minha goela abaixo. Nesse momento, costumo acordar, sobressaltado e só um copo de iogurte consegue me acalmar).


Woody Allen. Na Pele de Sócrates, in Que Loucura?. [Título original: Side Effects.] Tradução de Ruy Castro. Porto Alegre: L&PM Editores, 2011, p. 83-90. 
(Tradução adaptada)

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